17.1.09

A Malta do Vapor

Estrada de Ferro Gibson-Mauá que liga Manaus a Rio de Janeiro. Interior do vagão-restaurante do trem puxado pelo Barão, a mais moderna locomotiva do mundo.

— Que ninguém se mova ou vamos atirar para matar! Somos a Malta do Vapor e não temos medo de nos sujar com o sangue de vocês!

Os quatro homens levantam-se ao mesmo tempo de seus lugares na cabine, provocando pânico entre as pessoas bem vestidas que trocam o lento e monótono mastigar de suas refeições por gritos e choramingos. Um ou outro palavrão é entreouvido. Até aquele momento, desde que embarcou no penúltimo ponto antes da parada final, o quarteto anunciado como sendo o mais perigoso grupo de assaltantes de trens que já houve viajava de forma discreta; um integrante em cada extremidade do carro, nas mesas dos dois lados do corredor. Com disciplina marcial, sacam armas e erguem lenços para servir de máscaras dificultando o reconhecimento de suas identidades. O líder dos bandoleiros dá as ordens, primeiro para o parceiro à sua direita, depois para os outros à sua frente.

— Você, venha comigo, vamos revistar os homens. Os dois aí procurem a bugra. E todo mundo quieto! Fechem a boca agora ou vamos fechar por vocês! Último aviso.

Ele e sua sombra executam os mesmos movimentos de apalpar paletós com uma mão enquanto seguram pistolas com a outra. Não hesitam em dar tapas, socos e bofetões em quem não colabora com a revista forçada. Do outro lado, um dos mascarados segura um cartaz com a foto de uma jovem, com a qual vai comparando ao rosto de cada uma das mulheres a bordo. Eles também são violentos, arrancam chapéus caríssimos e seguram as mais chorosas pelo queixo para garantir uma boa visão da aparência delas.

O líder termina de examinar os bolsos de alguém quando desconfia de um sujeito que ocupa sozinho uma mesa de canto, encostado à janela aberta no fundo do vagão. O homem está com a cabeça baixa, chapéu impedindo que se veja sua cara. A roupa é toda de um cinza muito escuro, cor de fuligem, casacão, camisa, calças e botas, apesar do calor de fim de novembro transformar os arredores do Rio de Janeiro em uma fornalha faiscante.

— Deixa as mãos longe dos talheres e olha pra mim, magricelo — A arma é erguida a dois palmos da cabeça que se levanta devagar, um desafio evidente à paciência do interlocutor.

— Satisfeito? — Por fim ele encara o mascarado, olhando-o com desprezo. O rosto é quadrado e uma barba de três ou quatro dias o deixa com aparência tão cinzenta quanto o figurino que usa. Pela falta de rugas, passaria por uns vinte anos, não fossem fios brancos nos cabelos — mais compridos que o costume da época determina — a lhe darem o último toque cinza-grisalho que faltava ao conjunto.

A resposta vem na forma de uma coronhada no queixo, seguido de um empurrão que esfrega seu rosto contra o vidro da janela veneziana. O atacante sobe no banco duplo e encosta o cano da arma contra as costelas do alvo. O braço livre derruba prato, copo e talheres ao chão e em seguida começa a buscar algo oculto na roupa do desconhecido.

— Você é o tipo de encrenqueiro que estou a procurar, boquirroto! Se eu encontrar alguma coisa suspeita em seus bolsos... vou jogá-lo ainda vivo para fora deste trem.

— Espero que isso não inclua meus charutos — O comentário sai sem fôlego pela pressão do metal nas costas e pela cara ainda espremida contra a grossa vidraça.

De fato, a única coisa além da carteira, um relógio barato e do bilhete de passagem que o agressor encontra nos bolsos dele são dois charutos com nenhum indicativo de qualidade ou de periculosidade. Todos esses pertences são desprezados e o mascarado alivia a pressão, afastando-se um pouco. Ele ainda parece indeciso se deve deixar o homem de cinza vivo. O indicador da mão direita move-se quase imperceptivelmente encostado ao gatilho. Disparar ou não a arma é algo que ocupa seus pensamentos.

— Aqui, encontrei um que carrega um revólver.

Quem fala é o outro responsável pela averiguação da ala masculina. É só isso que faz a decisão ser tomada, a de deixar vivo aquele rapaz acinzentado. Na mesma hora o mascarado-chefe recua dois passos e segue na direção em que está seu comandado.

Um homem, duas mesas atrás, está com braços erguidos, rendido pelo algoz que agora porta duas armas, uma delas exibida de lado para o líder do bando.

— Um colt? Arma americana? Não é o padrão deles, mas quem sabe? Há alguma identificação, um distintivo?

— Não. Só a arma — O integrante da Malta do Vapor fala sem tirar os olhos da presa.

— Eu juro que era só para minha defesa pessoal... Não sou quem vocês procuram, seja lá quem for. Sou o coronel Ferreira, de Araruna...

— Não vamos arriscar. Sempre existe um agente deles nestes carros de luxo. Atire —A ordem do líder é dada sem emoção, nem por isso deixa de ser seguida no mesmo instante.

O tiro dado à queima-roupa abre um pequeno rombo na testa do homem, porém estoura a base do crânio na parte de trás. Sangue e miolos grudam na parede, contrastando com a madeira de qualidade, envernizada a ponto de virar espelho. Gritos e choros voltam a ser ouvidos e são silenciados com novos tiros, agora dados pelo líder em direção ao teto, quase acertando as luminárias a gás. Ele olha de canto para o homem de quem havia suspeitado. Não parece mais tão confiante agora, evita encarar e se limita a baixar o rosto em direção às mãos apoiadas na mesa esvaziada.

O corpo sem vida, com seus três olhos bem abertos e desalinhados, desaba ao chão.

Novamente, um dos assaltantes armados dá um aviso. Agora ele parte dos que estavam caçando entre as mulheres. O que fala segura uma jovem pelos cabelos bem ao lado do fotograma estampado no papel erguido pelo camarada.

— Cá está. Temos a rapariga em mãos.

Os olhos da mulher são nada menos que selvagens. Seu rosto tem feições indígenas, acentuadas pelo cabelo de um preto brilhante e muito liso — levemente despenteado pela ausência não-voluntária do chapéu que agora jaz a seus pés — e pelo bronzeado de um vermelho igual brasa recém-acesa, por sua vez realçado pelo vestido branco que usa. Mas mesmo se não fosse o sangue índio a dar tal impressão, o olhar dela não deixaria dúvidas de se tratar de alguém disposto a matar ou morrer. Ela claramente se esforça para não morder, cuspir ou xingar a dupla que aponta pistolas em sua direção.

— Ótimo, não vamos mais nos demorar. Temos ordens de acabar com a mestiça em caso da menor resistência — É o líder da malta quem fala, prestando, como seus comandados, total atenção ao alvo. — Sigamos para render o maquinista, vamos trancar todos aqui...

— Abaixem-se! Você também, garota, para baixo, já!

O aviso é berrado pelo homem acinzentado que, a despeito da rigorosa revista pela qual passara, segura nas mãos um objeto fosco, cuja ponta rebrilha explosões barulhentas.

Mesmo assustada a mulher obedece tão prontamente que muitos fios de sua cabeleira continuam nas mãos do mascarado que a prendia. Ele e o que segurava o papel com a estampa da mulher são varejados por balas antes de reagir: sem soltar gemido, despencam desarticulados contra a parede do carro. Reação mesmo cabe à outra dupla. O que estava mais próximo do estranho de cinza dispara contra ele, obrigando-o a se jogar para baixo da mesa fixada no chão por grandes parafusos. O líder corre na direção oposta.

Protegendo a vista da chuva de lascas de madeira provocada pelas balas inimigas, o único homem armado e sem máscara a bordo daquele carro volta a fazer mira com seu estranho trabuco. Ele acerta disparos contra a perna esquerda e o ombro direito do bandoleiro à sua frente, mesmo assim, indiferente à dor, o sujeito continua a se arrastar. Sempre atirando. O mascarado só para quando são o peito e a cabeça que se tornam alvo dos disparos.

— Venha aqui, mulher. Vou sair deste trem com você viva ou morreremos ambos agora — O líder da Malta do Vapor gruda a mão no pescoço da garota e a suspende do chão como um escudo. — Está a me ouvir, magricelo? Você vai me deixar sair por aquela porta ou eu e esta mulher levaremos chumbo, sim, mas é da minha arma!

Com meio corpo para fora da proteção do tampo da mesa e com o cano de sua arma soltando lufadas fumegantes feito a locomotiva que puxa o vagão onde todos se encontram, o homem de cinza hesita. O próximo passo, entretanto não é dado por ele.

A garota suspensa com facilidade pelo seu raptor ergue o braço direito para trás às cegas. Todos ouvem o disparo de uma pistola, mesmo os passageiros que se encolheram em seus lugares desde que o breve e furioso tiroteio começou. Ninguém entende nada quando quem desmorona para o lado com a cabeça perfurada é o homem que gritava ameaças.

Só quando a jovem deixa cair uma pistola — que recolhera no chão de outro dos seus pretensos captores — é que se percebe que ela não é tão desprotegida quanto aparentava.

— Eu nunca havia dado um tiro antes na minha vida... — A garota fala devagar olhando para a mão com nojo como se tivesse acabado de segurar um animal peçonhento.

— Espero que a senhorita não tenha que se habituar a isso. No mundo em que vivemos, depois que a gente começa é bem difícil parar de atirar — O homem se levanta, olha em torno para os cinco mortos, limpa o sangue que escorre do lábio inferior, onde levou a coronhada, e tenta acalmar os demais passageiros. — Está tudo bem, agora, sou da Polícia dos Caminhos de Ferro e a situação está sob controle.

— Além de policial deve ser mágico — diz a mulher, a única pessoa além dele em pé. — Como essa espingarda apareceu em suas mãos de uma hora pra outra?

— Espingarda? Este aqui é um fuzil de tiro fixo Guarany, criado e fabricado no Paraguai, arma exclusiva do exército brasileiro. Uma obra-prima da mecânica: o coice de um tiro engatilha o seguinte, basta apertar o gatilho uma única vez pra disparar até acabar os cartuchos — O policial recolhe seus objetos do chão novamente para o bolso do casaco, relógio, carteira; ele para e sente o cheiro dos charutos... — Sou obrigado a fazer meus truques. Já perdi três colegas para esse bando de assaltantes, sei como eles agem. Por isso, quando faço a escolta de um trem, ou quando estou só de carona, como agora, chego antes no vagão-restaurante, sento em uma mesa de fundo e penduro o Guarany do lado de fora da janela, preso pela tira. Isso e não usar nem uniforme, nem identificação policial são as únicas maneiras de manter a cabeça grudada no pescoço. Que o diga nosso amigo paulista ali, que acabou levando uma bala que tinha meu nome escrito.

— Uma arma pendurada por uma corda, nunca pensaria nisso — Ela olha para baixo, o homem cujo sangue está espalhado pela parte de trás de seu vestido tem a cabeça furada e descoberta, sem o chapéu nem o lenço. — É... é um desses estrangeiros, não é mesmo? Um desses imigrantes que substituíram os escravos na construção das ferrovias!

— Isso mesmo, a Malta do Vapor é formada por chineses. Este grupo, pelo sotaque lusitano, deve ter vindo da província de Macau — Ele segue chutando cada integrante do bando, para confirmar que estejam mortos. — Roubaram o nome “malta” dos grupos de negros capoeiristas e, desconfio, que o “vapor” seja pelo derivado do ópio que fumam antes de cada ataque. Isso os deixam imunes a dor: levam tiros, socos e chutes sem piscar. Mesmo sem o efeito de narcóticos, eles são osso duro. Certa vez capturamos um ainda vivo. Participei durante horas da... do interrogatório. O homem se recusou a falar qualquer coisa. Até o fim.

O policial se aproxima da mulher e faz um gesto de retirar o chapéu.

— Já que falei em nomes, permita que me apresente. Sou João Octavio Ribeiro, porém até meus colegas do departamento só me chamam de João Fumaça.

— Vestindo-se como um saco de carvão não é de se admirar o apelido.

— Na verdade, na verdade, me chamam assim porque minha mãe me deu à luz em uma Maria-fumaça, quando ainda vivia em Londres... Posso perguntar seu nome, madame? Terei que incluí-lo em meu relatório de qualquer maneira.

— Senhorita. Sou a senhorita Maria Pinto, futura senhora Gibson. Estou vindo de Manaus para encontrar meu noivo na capital do Império.

— Que sorte a minha — O homem devolve o chapéu à cabeça e abandona o sorriso. —Desconfio que Mr. Gibson pode ser a razão de tudo o que está acontecendo por aqui.

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