29.10.10

Do Brasil com vapor

O título acima, um belo achado semântico, é a tradução do artigo que Fábio Fernandes acaba de publicar no site da Tor nesta quinzena que eles dedicam ao steampunk. Segue abaixo um aportuguesamento meu do texto em que ele apresenta ao público anglófono o cenário da cultura steamer em nosso país.

Vá em frente, pergunte a eles: no país do Carnaval, geeks, nerds e aficionados por ficção científica normalmente não são diferentes do que você encontraria, digamos, nos EUA, no Canadá, na Austrália ou no Reino Unido Eles preferem ficar com uma boa leitura ou assistindo a uma maratona de séries de TV do que se fantasiar e se divertir com o samba nas ruas, por exemplo. Mas estaria o samba tão distante da ficção científica nos dias de hoje? Talvez não: em fevereiro de 2009, uma conhecida escola de samba bem carioca, a União da Ilha do Governador, escolheu como tema o maravilhoso mundo de Júlio Verne!



Até dois ou três anos atrás, os fãs mais literários da FC ficariam horrorizados se alguém os relacionasse aos "aos geeks que se vestem como Kirk e Spock nas convenções". (Sim, nós também temos. Várias delas). Mas veio um motor a vapor que, curiosamente, parece ter mudado tudo.



Não houve nenhum evento de proporções cósmicas no Brasil ao qual podemos atribuir o início do steampunk nestas terras. Muitos dos fãs de ficção científica tradicional que leem Inglês estavam bem familiarizados com o tropos steampunk desde o início dos anos 90, especialmente desde a publicação do The Difference Engine, embora tenhamos também lido James Blaylock, Michael Moorcock, e KW Jeter (nenhum dos quais foi publicado no Brasil até hoje, com exceção de uma única história de Elric Moorcock ... e de quase trinta anos atrás, imaginem vocês).

Mas talvez as coisas tenham se colocado aos poucos em movimento por aqui com outras mídias: cinema, anime e quadrinhos. Steamboy, de Katsuhiro Otomo, Fullmetal Alchemist, de Hiromu Arakawa e A Liga Extraordinária, de Alan Moore,  vêm à mente, entre outros exemplos.

E, de repente, uma nova geração veio se juntar a nós, velhos escritores e fãs (eu tenho 44 anos e a maioria destes steamers estão com seus vinte e poucos anos, o que é muito refrescante). E as coisas estão funcionando sem problemas na subcultura steamer brasileira: não falta carvão para alimentar as fornalhas daqui.



Hoje, o Brasil tem nada menos que sete Lojas Steampunk algo ligeiramente semelhante na organização de lojas maçônicas - mas sem segredos e conspirações - em um país com 26 estados. O fato de todas essas lojas terem sido criadas nos últimos dois anos é um feito enorme. As Lojas não escaparam do olho sempre atento de Bruce Sterling, que tem agora e repetidamente escrito sobre elas em seu blog. Há também um Conselho Steampunk Brasil, que serve como um elo para essas lojas e mantém uma comunidade web, AoLimiar que agora abriga cerca de sessenta blogs relacionados ao steampunk.

E, ao final do dia, esta situação gerou um efeito inesperado, uma reversão de expectativas, por assim dizer: em 2009, foi publicada, pela primeira vez, uma antologia Steampunk brasileira, apresentando contos originais de escritores conhecidos e de novos nomes do gênero. No mês passado, nós publicamos Vaporpunk, uma colaboração Brasil-Portugal com histórias originais que vão do conto até a noveleta (Ambos serão analisados por mim aqui na próximas semanas.)
 
Vários romances steampunk estrangeiros estão começando a ser publicado por aqui em tradução para o português brasileiro: The Difference Engine vai finalmente ser visto nas livrarias brasileiras em dezembro, e atualmente estou traduzindo Boneshaker Cherie Priest (que foi nomeado para Melhor Romance do prêmio Hugo, no início deste ano) para publicação no início de 2011. (Também traduzi a versão Absolute da Liga Extraordinária, publicado este mês no Brasil). Há também uma abundância de histórias originais steampunk brasileiras. Engraçado para um país tropical, você pode perguntar? Você nunca deve ter ido a São Paulo, ou para os estados mais ao sul. Pode ficar muito frio lá, e se vestir como nos anos oitenta (os anos oitenta do século XIX, é claro).

Fábio Fernandes é um escritor e tradutor vivendo em São Paulo, Brasil. Ele traduziu aproximadamente setenta romances de diversos gêneros para o Português do Brasil, entre eles Laranja Mecânica, Neuromancer e Snow Crash. Você pode ler alguns de seus escritos em Steampunk Reloaded e no vindouro The Apex Book of World SF, Vol 2.

VanderMeer diz que vem mais Brazilian Steampunk por aí 2

Uma ótima novidade acabou de ser revelada no blog de Jeff VanderMeer depois de um misterioso anuncio comentado em um post anterior: em parceria com uma dupla sempre comentada por aqui, o americano vai deixar à disposição dos leitores anglófonos a partir de novembro os trechos iniciais de todos os oito contos da coletânea lusobrasileira Vaporpunk! (Não costumo usar exclamações por aqui, mas esta ótima surpresa, certamente vale) Essa atração, bem como a tradução completa da noveleta "Um vida possível atrás das barricadas", de Jacques Barcia, originalmente publicada em Steampunk - Histórias de um passado extraordinário, será um material complementar da antologia que foi recentemente compilada pelo próprio VanderMeer: a Steampunk Reloaded.

Estas traduções foram feitas em cortesia por Fabio Fernandes e Larry Nolen, e pretendem dar ao público de língua inglesa um gostinho do que os steampunkers brasileiros estão fazendo (E espero poder trazer traduções completas mais tarde.


Esta é a declaração dele no post em que anunciou a novidade e ainda citou nominalmente o Conselho Steampunk como o principal responsável pelo lançamento das duas coletâneas de contos e noveletas que saíram no Brasil entre 2009 e 2010. Em seu longo texto, o escritor e editor reflete sobre essa tendência - que é mundial - de revalorização da cultura steamer, a tal ponto de gerar alguns comentários negativos de pessoas que estão incomodadas com a superexposição do gênero, caso de um recente artigo de Charlie Stross. VanderMeer faz uma reflexão bastante interessante a respeito disso:

Em parte isso ocorre porque o steampunk oferece agora um importante ponto de entrada para escritores interessados em inovação, principalmente porque ele se tornou potencialmente comercial; você pode usar o steampunk para algo seriamente weird, belo, único, para  material não-tradicional porque é algo que as editoras têm aceitado pois começaram a conseguir comercializá-lo de forma eficaz.

Essa é uma discussão interessante e que está se desdobrando em vários artigos pela rede. Já procurei deixar clara minha posição sobre as potencialidades do subgênero - e que não deveriam ser limitadas pelo sufixo punk. Mas talvez seja o caso de voltar a falar sobre essa dualidade entre engajamentos e escapismos, em algum momento quando eu não estiver com tanto trabalho para fazer. Por ora, é o momento de dar os múltiplos parabéns a Jeff VanderMeer, Fábio Fernandes, Larry Nolen, Jacques Barcia e a todos os contistas da Vaporpunk por essa excelente novidade! E lá foi mais uma exclamação, merecida.

26.10.10

O novo lar do João Fumaça

Não vou negar que estava com saudades do mini-João Fumaça, que passou uma temporada de um mês aqui em casa antes de ser encaminhando para o vencedor do sorteio promovido em parceria com o pessoal do Superfakes. Para aliviar um pouco a falta que o bonequinho faz aqui na minha mesa do computador, felizmente Ivo Heinz, o sortudo que o levou para casa, agora me manda fotos do bigodudo em seu novo lar, na capital paulista.



Como podem ver, meu personagem já arrumou companhia. Mas quem é aquele bicho que parece um cruzamento entre Alf e Chewbacca?



O nome dele é Milodón, um marsupial pré-histórico que habitou nosso continente. Alguns anos atrás, Ivo e sua esposa visitaram uma localidade chilena chamada Puerto Arenas onde há um monumento a respeito desse parente distante dos cangurus.


Então é isso, vou deixar o novo amigo do João Fumaça se despedir de vocês.



"Tá limpo!"

25.10.10

Polêmica com o Homem de Ferro steamer

Mas quem diria que eu ia volta a esse assunto. Dias atrás não resisti a fazer uma nota sobre um cosplay steampunk do Homem de Ferro, apresentado durante um evento ligado aos quadrinhos:




Bem, não tão crianças assim, mas está valendo. Não tinha como eu deixar de fazer o registro aqui da fantasia que mais chamou a atenção de todo o mundo no New York's Comic Con realizado nestes últimos dias e que coincidiu com o nosso feriadão do Dia das Crianças. Apesar de não ser tão famoso e prestigiado quanto o evento anual que ocorre em San Diego, o NYCC atraiu cosplayers que investiram pesado em seus trajes inspirados nos quadrinhos e no cinema. O exemplo perfeito é o dos quatro mil dólares investidos por Matt Silva - segundo este site - e amigos em sua impressionante caracterização de um Homem de Ferro steampunk.

Pois a tal armadura agora está envolvida em uma polêmica a respeito de sua verdadeira criação. O Gizmodo Brasil contou essa história.



Nesta semana, este traje steampunk do Homem de Ferro venceu o prêmio de melhor fantasia da New York Comic Con. Mas parece que a fantasia é um item repintado de um filme independente, e o criador desse filme está "extremamente irritado" com a pintura de seu novo super-herói.

O traje foi criado originalmente para um personagem de Homem de Lata no curta independente Heartless. Depois que as exibições promocionais do filme acabaram, Matt Silva, um dos assistentes que fez a fantasia, ficou encarregado de cuidar dela. A New York Comic Con chegou, e colocando um pouco de tinta vermelha e dois repulsores, você tem o Homem de Ferro steampunk que até ganha prêmios.Todo mundo achou ótima a fantasia. Exceto Bill, o designer-chefe da fantasia original do Homem de Lata, que foi pego despercebido pela fama recente:

Acabei de descobrir que o traje de Homem de Lata foi levado e transformado em um traje de "Homem de Ferro" que ganhou o concurso de fantasias da NY Comic Con por meu ex-assistente. O traje foi modificado sem meu conhecimento nem permissão, e estou extremamente irritado com isto. Também é triste ver que a única versão que existe deste traje usado no filme agora é uma cópia barata de um personagem popular. Eu não entendo mais as pessoas, e isso me faz querer me tornar ainda mais recluso.

21.10.10

Damas e Cavalheiros: a Steampunk Bible 3

Acabo de perceber que a entrevista feita por Jeff VanderMeer com sua coautora S. J. Chambers que postei abaixo não foi a única menção que ele fez recentemente à Steampunk Bible. Na terça-feira, dia 19 deste mês, o editor havia publicado mais prévias das páginas daquele livro em seu blog. Apesar do pedido que ele fez na curta apresentação, não posso resistir a compartilhar com os leitores. Espero que ele me desculpe.

Damas e Cavalheiros: a Steampunk Bible 2

No dia 28 de agosto, postei uma das notas que mais me deram satisfação de escrever para este blog:

Com um prazer incomensurável eu anuncio por aqui uma novidade que me enche de orgulho e alegria. Jeff VanderMeer teve a primazia da notícia em seu blog, o Ecstatic Days. Nada mais justo. Afinal, ele é o grande responsável pela obra em questão. O escritor e editor americano, organizador de coletâneas de repercussão internacional sobre Steampunk e New Weird, acaba de mostrar ao público as provas de seu mais novo projeto, um autêntico e luxuoso livro de arte. E, sim tenho a honra de estar naquelas páginas ao lado dos escritores Fábio Fernandes e Jacques Barcia, com quem já havia dividido espaço na coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário, e ainda com criadores do porte de Jess Nevins, Libby Bulloff, Bruce Sterling, Desirina Boskovich, Jake von Slatt, Rick Klaw entre muitos outros.


Foi assim que anunciei o projeto da Steampunk Bible, um autêntico coffe table book que deve se tornar referência obrigatória sobre este subgênero em todas as vertentes culturais e artísticas imagináveis. E como o tema não está só em evidência no Brasil, a repercussão a respeito da Biblia do Vapor vem tomando conta de muitos espaços. Caso do Tor dot Con, renomado site de ficção científica e fantasia que, periodicamente, dedica-se a divulgar a cultura steamer. Estamos justamente em um desses períodos e, em uma das postagens de hoje, quem escreve é o próprio Jeff VanderMeer. O escritor e editor americano entrevista S.J. Chambers, sua coautora naquele projeto.

O que me deixou muito feliz foi um trecho da apresentação que ele fez da obra, cujas 224 páginas totalmente coloridas serão publicadas pela Abrams Imagem em maio do ano que vem:

O livro traz citações ou entrevistas de um vasto leque de especialistas, de Libby Bulloff a Ay-leen, the Peacemaker; de Bruce Sterling a Jake von Slatt; de Bryan Talbot a Gail Carringer. Ela inclui ainda um trecho exclusivo da tradução de uma história steampunk brasileira.

Quem acompanha esta página, já sabe que esse último item se refere a um excerto de "Cidade Phantástica", ou melhor, de "Phantastic City", conforme tradução de Fábio Fernandes. Esse fato ser destacado pelo próprio editor em meio a tantas atrações reunidas por VanderMeer e Chambers naquele livro, após mais de um ano de pesquisa por tudo o que este gênero produz no mundo, é uma honra e tanto. Confiram a entrevista e a introdução completa neste endereço.

19.10.10

Machado de Assis e a Guerra dos Mundos

Já falei bastante sobre mashups por aqui. Em uma postagem, lembrei de um texto anterior a esta onda que de forma premonitória,  ao mencionar as semelhanças entre a literatura cyberpunk e o Naturalismo, exemplificava seu ponto dizendo que o romance brasileiro O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1857-1913) se prestaria a uma releitura influenciada pelo trabalho dos americanos Willian Gibson e Bruce Sterling. Como disse naquela ocasião, o texto de autoria de Rodolfo Londero foi retirado do site Terra Magazine, onde foi orginalmente publicado no início de 2007. No mesmo ano, o titular daquela coluna sobre ficção científica também registrou por lá um conto que fez exatamente isso que o outro se propunha a fazer na não-ficção: a fusão entre o trabalho de dois autores distintos.

Roberto de Sousa Causo, contista da coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário e colunista daquele site, foi quem realizou o feito de unir em uma mesma narrativa uma ideia original do inglês H. G. Wells (1866-1946) com o estilo do brasileiro Machado de Assis (1839-1908). Em "A vitória dos minúsculos", Causo ambientou no Brasil, na então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, a trama do livro A guerra dos mundos, de 1898. Agora narrada por um - não sem motivos - assustado Machado de Assis, a invasão alienígena foi revista tendo como cenário as ruas cariocas. Na introdução que republico aqui, o autor paulista esclarece as motivações e inspirações para aquela sua ficção alternativa e cita um outro brasileiro, o carioca Henrique Alvim Côrrea (1876-1910), que é conhecido nos meios da ficção científica justamente por ter sido o ilustrador de uma edição belga de 1906 daquele livro escrito por um dos pais do gênero. É dele a imagem que segue.



A Guerra dos Mundos ainda repercute no universo da ficção científica. A história de repercussões que se apropriam da história é antiga, começando com editores americanos lançando, ainda no século 19, dime novels em que Thomas Alva Edison inventa foguetes que levam soldados a Marte para dar o troco aos invasores. Em 1938, na véspera do Dias das Bruxas, Orson Welles levou ao ar uma versão radiofônica da invasão, transferida para a Costa Leste americana. Em 2005, David Cian, no romance Megawar, propõe que Wells teria disfarçado fatos reais como ficção, com um segundo round agora no século 21. Mas foi a antologia The War of the Worlds: Global Dispatches, de 1996, editada por Kevin J. Anderson, que me motivou a escrever esta minha versão da invasão marciana - apesar de ter a palavra "global" no título, todos os contos da antologia foram escritos por anglo-americanos. No meu conto, o Rio de Janeiro é palco da guerra dos mundos. As ilustrações são de Henrique Alvim-Corrêa, o primeiro artista brasileiro de FC, que ilustrou o romance numa edição de 1906.  Continua

17.10.10

VanderMeer diz que vem mais Brazilian Steampunk por aí

Notinha enigmática (e bem-humorada) do escritor e organizador Jeff VanderMeer em seu blog avisa que há novidades à vista relacionadas com brasileiros. Aproveitando para anunciar sua nova coletânea Steampunk Reloaded - que já pode ser encomendada com 20% de desconto no site da editora -, o americano deu algumas dicas para os leitores complementarem seus conhecimentos do gênero até se fartarem. Ele lembrou que em breve postará como complemento ao livro um conto chamado “A Life Made Possible Behind the Barricades”que é nada menos que a versão em inglês da noveleta "Uma vida possível atrás das barricadas", do escritor pernambucano Jacques Barcia, originalmente publicada na coletânea brasileira Steampunk - Histórias de um passado extraordinário.

 

Mas até aí, já sabíamos. Acontece que VanderMeer adiantou que em breve haverá também uma surpresa que foi preparada por uma dupla velha conhecida dos leitores deste blog. São eles o outro contista brasileiro presente naquela antologia americana - Fábio Fernandes, autor de "Uma breve história da Maquinidade" para a coletânea brasileira - e pelo crítico americano Larry Nolen, responsável por uma das mais completas resenhas que a citada coletânea recebeu. Que surpresa é essa? Juro que não sei e que estou ansioso para descobrir. Por fim, o blogueiro voltou a citar um outro tabalho seu de organização e compilação internacional pelo qual aguardo ainda mais ansiosamente: a Steampunk Bible, na qual, graças ao citado Fábio Fernandes, terei uma participação. Como se não bastasse tudo isso, ele ainda termina dando uma dica do que pode ser o próximo alvo de sua atenção, como escritor ou como compilador (ou seria um despiste?): dieselpunk. Quem quiser conferir e tirar suas conclusões, pode ler a nota neste endereço.

Decoração steampunk

Esta dica eu peguei via twitter da pesquisadora Adriana Amaral: um artista plástico encontrou o  mais inusitado dos usos para minas explosivas de uma base militar russa desativada. Mati Karmin, da Estônia, transformou o que eram artefatos mortais em objetos de decoração com uma estética na fronteira entre o steampunk e o dieselpunk. Leia abaixo como o blogueiro André Montejorge descreveu o trabalho do artista e veja algumas das fotos que ele publicou neste endereço.

Sabe o que se faz com velhas minas que restaram em uma antiga instalação secreta dos russos?! Pergunte ao artista da Estônia, Mati Karmin, que ele tem um monte de opções! Explico! Com o abandono da base russa na ilha de Naissaar, no Golfo da Finlândia (e próxima a casa do artista), muitas e muitas minas (sem explosivos, claro) ficaram ao relento. Resultado: Mati passou a utilizá-las como matéria-prima para os mais variados objetos. De fantásticas lareiras a inacreditáveis carrinhos de bebê, o que antes servia para destruir e estava fadado a virar sucata, hoje virou incríveis mobiliários.




Torre de Vigia 34

Falei sobre o seminário Science'N'Fiction em um post anterior, destacando o debate que se fará nele a respeito do tema deste blog. Antecipando o debate, a página do evento entrevistou o representante da cultura steamer naquela iniciativa,  Carlos Eduardo Pereira Felippe, mais conhecido pelos apreciadores de seus artigos no site da Loja São Paulo do Conselho Steampunk - entre os quais eu me incluo - como Karl Felippe. Na conversa, o futuro debatedor fez uma análise interessante dos motivos do sucesso do gênero em nosso país e citou entre suas leituras as coletâneas nacionais lançadas respectivamente pela Tarja e pela Draco, Steampunk - Histórias de um passado extraordinário e Vaporpunk. Abaixo, segue uma seleção da entrevista que pode ser lida na íntegra aqui.


Por que você acha que o Steampunk deu tão certo no Brasil?
Ressonância morfogenética (risos). Certo, falando sério: acho que o motivo foi simplesmente timming. Fora do Brasil, a “cena” steampunk, por assim dizer, já estava crescendo exponencialmente (a chamada segunda onda steampunk), mas agora não apenas nos livros, mas também como subcultura, se espalhando para outras formas de arte -  pintura, escultura, modelagem, moda, constumização, musica e assim por diante. Era natural que algo assim chegasse aqui, calhou apenas de não ser com um atraso muito grande.
Talvez a identificação com o steampunk deva-se ao fato de que, aqui no Brasil, não houve uma grande explosão tecnológica no século XIX, como em outro países, mas houve uma grande produção cultural (literária). Isso pode-se perceber na ênfase dada às obras produzidas aqui e, mesmo na vitalidade diferente das histórias steampunk produzidas no Brasil, que costumam se desviar um pouco do otimismo “a ciência nos salvará!” de outras histórias, assumindo uma postura mais para “a ciência nos salvará?” de um modo bem parecido com as primeiras histórias steampunk escritas no início dos anos 1980. (...)

Quais são seus autores de referência?
Poderia citar James Blaylock, K. W. Jeter e Michael Moorcock porque li mais de dois livros de cada um que se encaixassem no gênero. E alguns livros que valem a pena mencionar são The Difference Engine, do William Gibson e do Bruce Sterling, Anti-Ice do Stephen Baxter, a antologia Extraordinary Engines de Nick Gevers, bem como a antologia Steampunk de Jeff e Ann Vardermeer. Mainspring do Jay Lake (que não é exatamente steampunk, mas dane-se), os dois primeiros volumes da Liga Extraordinária do Alan Moore, e mais recentes como o Boneshaker, da Cherie Priest, Leviathan do Scott Westerfield, Clockwork Heart da Dru Pagliassotti,  Whitechapel Gods do S.M. Peters, e bem, temos duas antologias nacionais no gênero que são realmente muito boas: uma da editora Tarja e outra da Draco.

15.10.10

Vem Dieselpunk por aí 2

Havia noticiado a próxima coletânea retrofuturista lusobrasileira no dia 29 de agosto. Repetindo a parceria entre o escritor e organizador Gerson Lodi-Ribeiro e a Editora Draco que resultou em Vaporpunk, Dieselpunk acaba de ter suas guidelines anunciadas. Basicamente, a intenção primordial é trabalhar com textos que tenham ambientações brasileiras ou portuguesas, mostrando como avanços tecnológicos poderiam ter modificado a sociedade caso ocorressem de modo mais expressivo do que em nossa realidade nos primeiros anos do século XX. As noveletas deveram ter, de um modo ideal, entre 8 mil e 18 mil palavras e o prazo de entrega é no dia 31 de março de 2011, pelos emails glodir@unisys. com.bre ericksama@gmail.com. Para todos os detalhes, acessem este endereço.

Machado reloaded 2

Já havia falado desta ficção alternativa antes, agora saiu o convite para o lançamento da obra publicada pela Tarja Editorial.

14.10.10

Dica de um leitor: War Baloon

Adoro receber um retorno tão bacana dos leitores, caso de um comentário do Marcos que deixou uma bela dica no post do Dia das Crianças:  um jogo de tabuleiro chamado Steampunk - War Baloon. Vejam as imagens e leiam o comentário dele:



Olá Romeu,

eu também adorava Scotland Yard. E muitos jogos como Combate, Detetive e War.

Recentemente (ontem!), conheci a cultura Steampunk depois de pesquisar alguns títulos e termos que o Hermano Vianna escreveu na coluna dele no Segundo Caderno do O Globo (Sexta-feira, 8 de outubro de 2010).

Tenho que admitir que gostei muito, muitas das referências Steampunk eu já apreciava sem conhecer o contexto maior (como jogos e algumas produções). E pretendo seguir pesquisando e me interando do movimento.

Gostaria de compartilhar com vocês outra descoberta que fiz esse ano e me acrescentou muita coisa bacana, que foram os novos jogos de tabuleiro. Depois de uma breve notícia e uma pesquisa na internet (mais ou menos como com Steampunk). Descobri que existem milhares de jogos modernos e interessantíssimos de tabuleiro.

Há uma casa de jogos específica em São Paulo, a Ludus Luderia, e diversos encontros no Rio de Janeiro de aficionados por jogos de tabuleiro e um site referência é o www.boardgamegeek.com.

E, através da curiosidade de alguns comentaristas acima, resolvi pesquisar o Steampunk no Bgg e descobri o Steampunk - War Baloon um jogo de 1994 com dirigíveis Steampunk que não conheço, mas pelas imagens tem alguns desenhos bem legais!


Espero ter contribuído um pouco com a cultura Steampunk e divulgado para outros que gostam de jogos de tabuleiro como o universo de jogos é mais extenso do que nos permitem os fabricantes no Brasil.

Contribuiu, sim, Marcos! Muito legal que tenha sido um texto do meu overeditor Hermano Vianna que tenha te chamado a atenção para a cultura steamer. E muito legal a dica do jogo de tabuleiro, que não conhecia, mas fiquei muito curioso a respeito. Obrigadão e esteja à vontade para novos comentários e dicas.

Viagens temporais

Vou começar esta resenha do livro O mapa do tempo, do espanhol Félix J. Palma – lançado recentemente no Brasil pela editora Intrínseca – citando outra resenha que escrevi tempos atrás.

Milênios antes de o engenho humano tê-lo tornado possível, nosso velho sonho de voar como os pássaros ganhou a forma de uma lenda, na Grécia antiga. Histórias como a de Ícaro anteciparam e mobilizaram a vontade de um número incontável de pessoas ao longo das eras, servindo ora como fonte de inspiração ora como alerta. De certa maneira, a ficção científica pode ser considerada sucessora dessa linhagem de narrativas mitológicas, com o diferencial de ter substituido a intervenção dos deuses por uma dose – em alguns casos, ligeira pitada – de empreendedorismo humano e de conhecimento aplicado. Um exemplo prático desse moderno cânone mitológico foi o primeiro livro de um dos desbravadores do gênero literário: A máquina do tempo, de H. G. Wells. O escritor inglês fundou um novo mito quando fez seu Ícaro anônimo desafiar não os céus mas aquilo que chamou de quarta dimensão, em uma viagem ao futuro. 



A influência daquele escritor britânico na obra do ibérico é muito maior que apenas a inspiração da mitologia a respeito de viagem no tempo. H. G. Wells (1866-1946) é uma presença constante nas 470 páginas do romance de Félix J. Palma como personagem de fato. Em todas as três partes que compõem o livro. Primeiramente, ele, aos 30 anos, recém-lançado no mundo da literatura, parece ser apenas um coadjuvante na história de um jovem londrino obcecado com um crime que ocorreu oito anos antes, no outono de 1888: o assassinato da mulher que amava pelas mãos de Jack, o estripador. Já no trecho seguinte, Wells divide a trama em importância com outro personagem, numa sequência epistolar que é o grande momento da obra. Mas é no terço final em que um dos pais da ficção científica acaba recebendo a maior homenagem de O mapa do tempo, como fundador mesmo de uma mitologia moderna, à frente de outros escritores citados e também presentes, como o irlandês Bran Stoker (1847-1912).

Infelizmente, esta derradeira parte é também a mais fraca do livro. Se Palma tivesse escrito uma trilogia, recomendaria comprar apenas os dois primeiros capítulos e deixar o terceiro de lado. Mas como em sua estreia como romancista ele criou um tomo único, não acredito que sejam as 130 páginas finais que vão comprometer este que é um excelente lançamento e que foi uma das grandes surpresas literárias do ano para mim. Uma oprtunidade e tanto para se desbravar a FC de um país do qual não costumam circular muitos exemplares em nossas livrarias. Mais ainda para os apreciadores do steampunk, pois, com várias especulações sobre as diversas formas de se ludibriar os mecanismos cronológicos a partir do século XIX, O mapa do tempo é uma ótima aquisição. Porém, não gostaria aqui de tentar dar uma classificação precisa do gênero a que ele pertence, melhor deixar essa tarefa aos leitores.

O que dá para dizer sem medo é que a prosa do espanhol, traduzida para o português por Paulina Wacht e Ari Roitman, faz valer o investimento. O escritor criou um narrador orgulhosa e cinicamente onisciente que é uma atração imperdível de seu romance, mesmo não fazendo parte fisicamente dos acontecimentos que nos conta. Sua capacidade descritiva é de prender a atenção e não largar mais, mesmo quando ele deixa o enredo de lado para se ater ao passado de algum personagem  – na verdade, um dos meus trechos favoritos do livro é justamente uma dessas passagens, ainda na primeira parte, quando o autor descreve um encontro entre Wells e Joseph Merrick (1862-1890), mais conhecido como o Homem Elefante. A capacidade de ir do sarcasmo ao lirismo impressiona. Assim como impressionantes são as formas de paradoxos temporais que Palma apresenta, conseguindo ser criativo em uma tradição criada por aquele seu personagem e inspirador há 115 anos.

13.10.10

Ensaio steampunk

E por falar em cosplay e afins, também neste feriadão ocorreu no Paraná uma diversidade de eventos relacionados com o século XIX. Além de um piquenique vitoriano, meus vizinhos se reuniram para promover um excelente ensaio fotográfico.


Os daguerreótipos paranenses podem ser vistos nesta página de Miss Damballah, uma especialista em dança tribal que tive o prazer de conhecer - e a sua família - em um evento que ocorreu em Florianópolis.

Feliz Dia das Crianças 2

Bem, não tão crianças assim, mas está valendo. Não tinha como eu deixar de fazer o registro aqui da fantasia que mais chamou a atenção de todo o mundo no New York's Comic Con realizado nestes últimos dias e que coincidiu com o nosso feriadão do Dia das Crianças. Apesar de não ser tão famoso e prestigiado quanto o evento anual que ocorre em San Diego, o NYCC atraiu cosplayers que investiram pesado em seus trajes inspirados nos quadrinhos e no cinema. O exemplo perfeito é o dos quatro mil dólares investidos por Matt Silva - segundo este site - e amigos em sua impressionante caracterização de um Homem de Ferro steampunk.



Detalhes  minuciosos tanto na parte da frente da armadura...



... quanto na de trás, que levou o prêmio de melhor do concurso.



Mas este Boba Fett, também steamer, merece igualmente merece destaque, com um cosplay que cutou algo entre três mil e quatro mil dólares.

12.10.10

Feliz Dia das Crianças

O post de hoje é rápido, para não atrapalhar o feriadão de ninguém. Mas a nostalgia deste 12 de outubro me fez lembrar mais um culpado pelo meu interesse no século retrasado e não pude deixar a data em branco. Uma procura rápida no oráculo me permitiu localizar uma foto da exata versão do jogo de tabuleiro Scotland Yard, da Grow, que fez muitas tardes da minha infância nos anos 80 serem mais divertidas.



Caçando pistas nos diversos ambientes do tabuleiro - como Hotel, Casa de Penhores, Charutaria -, indo a pé ou de carona em alguma carruagem, lacrando os locais mais importantes - ou simplesmente para enganar os colegas - foram dezenas de casos investigados por mim e por meus amigos. Até alguém soltar o "Elementar, meu caro Watson", que, apesar de nunca ter aparecido nas histórias escritas por sir Artur Conan Doyle (1859-1930), se tornou o bordão clássico de seu personagem mais célebre e a senha para encerrar cada partida daquele jogo.

11.10.10

Sobre "San Juan Romero"

O conto que republico abaixo é de uma das mais versáteis escritoras da ficção especulativa nacional, a pernambucana Rita Maria Félix da Silva, autora de quem já tive a oportunidade de apresentar vários outros textos em um segundo blog sob meus cuidados, o Terroristas da Conspiração. "San Juan Romero" é o que se pode classificar de Weird West, narrativa fantástica ambientada durante o período da expansão do território dos Estados Unidos rumo ao Oeste. No caso, Rita Maria optou por trabalhar com a vertente fantástica do terror neste conto que apresenta um membro de uma das famílias recorrentes em suas criações. O Weird West, assim como as Gaslight Novels, já comentadas anteriormente neste blog, formam um dos subgêneros que acabaram sendo fagocitados pelo steampunk, alimentando o imaginário dessas recriações do século XIX à luz do fantástico. Pedi a autorização da escritora para postar seu ótimo texto por aqui como mais uma mostra das diferentes possibilidades de se trabalhar com o passado, não apenas variando períodos históricos - como ocorre com o sandalpunk, dieselpunk entre outros - mas também na temática, indo além das questões tecnológicas. Boa leitura!

San Juan Romero


Uma aventura de Sir James Winterwood


 
      Parte I

05 de julho de 1892...
Era uma tarde numa terra de calor, poeira e desolação - um vilarejo na fronteira do México, que fora esquecido pelo mundo. E foi naquele dia que o viajante chegou.
Ele parou na entrada daquele lugar, desceu do cavalo e leu uma inscrição numa tábua caída: "San Juan Romero".
Em seguida, pegou, de um compartimento na sela do cavalo, um cantil e provou um gole de água (que acabou bem antes do que ele esperava). Guardou o cantil. "San Juan Romero". Jamais ouvira falar daquele lugar, porém teria de servir.
Retirou o chapéu e, com um lenço, começou a limpar a poeira e o suor que lhe cobriam o rosto. A pele estava ressecada pelo sol, os cabelos desgrenhados e a barba não era feita há dias. Seu estômago reclamava e seu coração estava partido... Porém, ele virou o rosto para o lado e repeliu as memórias, evitando que o dominassem... Pois, como já havia aprendido tanto tempo atrás, elas podem ser bem mais cruéis que o deserto...
Recolocou o chapéu, montou novamente e começou a entrar em San Juan Romeiro. Ele já havia cruzado metade da rua principal - e lhe pareceu que estava numa cidade fantasma - quando um grupo de cinco homens bloqueou seu caminho. Um deles segurava um velho rifle, os outros estavam armados com picaretas. O viajante saudou-os em espanhol, uma língua que aprendera com seu pai, em tempos melhores:
_Boa tarde. Estou viajando há muitos dias. Por favor, preciso de comida, água e de abrigo por uma noite. Eu posso pagar bem.
Os homens olharam para o viajante, com expressões severas e hostis, e um deles, o que carregava o rifle, um tipo muito magro, de olhos apertados, falou desta forma:
_Vá embora. Não queremos estranhos por aqui.
O viajante considerou a possibilidade de passar a noite no deserto e depois resolveu insistir:
_Eu não vou incomodar. E, pela manhã, irei embora.
_Não! Vai dar meia-volta agora e vai sumir - retrucou um deles - ou não vamos nos responsabilizar pelo que acontecer a você.
Em seguida, o homem do rifle mirou na direção do viajante, que contemplou atenta-mente os olhos daquela figura...Lá estava uma expressão que ele já vira antes, no rosto de loucos e assassinos (como naquela aldeia na Índia ou em um dos safáris na África Central... E em outras vezes que foi esfaqueado ou baleado ou, de alguma forma, em todas as ocasiões em que a morte se aproximou o bastante para colocar a mão em seu ombro e sorrir).
O viajante tinha um revólver pendurado do lado direito de sua cintura e acreditava que poderia atingir aquele homem antes que o rifle fosse disparado, mas ele preferia resolver este assunto de um modo que não custasse o sangue de ninguém. Todavia não desejava morrer, com um tiro no peito, caído naquela terra empoeirada...
O viajante e aqueles homens permaneceram em silêncio por alguns instantes, num tenso impasse, cada um aguardando o que o outro faria.
Foi então que uma voz inesperada intercedeu:
_Perez! Você está louco? Abaixe essa arma! Ele é só um estranho e você não vai querer mais sangue em nossas mãos, não é?
O viajante olhou para a esquerda e viu que se aproximava um velho de longas barbas, segurando um cachimbo.
Perez baixou o rifle a contragosto - tentando conter sua própria fúria, que era como a de um cão raivoso. Quando o velho já havia se aproximado o suficiente, o viajante decidiu falar:
_Eu agradeço muitíssimo, senhor. Eu sou...
_Não me interessa! - vociferou o velho - Tem um depósito abandonado ali. Vou conseguir comida e água. Você vai embora de manhã. É só esse o tempo que vou conseguir segurá-los.
O grupo de homens se afastou rapidamente, murmurando furiosos para si mesmos, tão frustrados quanto uma fera de que se rouba a comida. O velho também foi embora - e seus passos lembravam os de um fantasma.
O viajante ficou parado contemplado os homens que se afastavam, o vilarejo - que parecia incômoda e sombriamente vazio - e meditou sobre a sensação de desconforto que crescia em seu coração, um alerta de que algo estava terrivelmente errado com aquele lugar... "(...) Você não vai querer mais sangue em nossas mãos, não é?" - lembrou o viajante. Um calafrio afligiu-lhe a espinha. Sim, seus instintos gritavam para ele: havia algo de maligno e oculto em San Juan Romero.
Ele puxou seu cavalo na direção do depósito e recitou para si mesmo uma prece. Prometeu, por sua alma, que partiria no começo da manhã. Para seu próprio bem, deveria ser dessa forma.



Parte II

O depósito era de madeira velha e estava em condições precárias, como se um vento forte pudesse derrubá-lo. Parecia já está vazio há muito tempo, exceto por algumas ferramentas - pás e picaretas - que foram abandonadas ali. O viajante imaginou que San Juan Romero já houvesse sido uma terra de mineradores... Talvez em outros tempos. Agora, não passava de uma cidade morta, cujos habitantes pareciam não terem entendido isso.
O viajante sentou-se em um canto e logo um outro homem - com o rosto como o de uma fera prestes a lançar-se sobre sua presa - trouxe comida e água e saiu sem dizer uma une-la palavra.
O gosto daquele líquido era por demais desagradável e os alimentos não estavam melhores, porém, o viajante comeu e bebeu como pôde, depois espalhou um saco de dormir no chão e adormeceu... E depois começou a sonhar. Ele era Sir James Winterwood e sua memória era cotada como extraordinária.
Nos sonhos, ele via seu pai, Sir John, vagando pelo mundo e arrastando consigo a esposa e o filho, ainda pequeno, por lugares dos mais diversos e hostis, mas que o fascinavam, pois John era um viajante, um aventureiro, um homem obcecado com a idéia de aprender, de conhecer os mistérios que se ocultam neste mundo. Ele fora alguém notável, sem dúvida, e que desejava tornar seu nome uma lenda.
Porém... James era ainda adolescente quando sua mãe, Lady Margareth, sucumbiu à malária no sudeste asiático. Sir John chorou de uma forma que James nunca imaginara ver e, a partir daquele momento, definhou até não ser mais do que um rascunho do homem que um dia fora. James voltou à Inglaterra, deixou Sir John aos cuidados de criados leais e retornou ao caminho que havia aprendido com seu pai, porém de uma forma um pouco diferente...
Certamente, o mesmo fogo que uma vez impulsionara o coração de Sir John também iluminava o espírito do jovem James. Todavia, em sua alma habitava parte do que havia feito de Lady Margareth uma mulher tão maravilhosa: o gosto pelos livros, pela cultura, pelas estórias. James vagava pelo mundo coletando os fatos mais inusitados para com eles escrever livros, que, assim ele ansiava, seriam lidos por gerações após sua morte. Suas obras, assim ele sonhava, o tornariam imortal.
Muito tempo já se passara desde então: ele enterrara seu pai no início de um inverno e vivera aventuras sem conta (uma das mais estranhas, ele enfatizaria alguns anos depois em suas memórias, ocorreu em sua própria pátria, quando encontrou Skykeeper, um louco, sem-teto e londrino, perseguido pela crueldade de Lorde Douglas Whitehill... quando James aprendeu que a fronteira entre nosso mundo e o que está além dele é bem mais tênue do que julgara...)
Então, o sonho começou a mudar... Ele passava dos quarenta anos agora e estava chegando a América pouco tempo atrás... Sir James ouvira muitas histórias sobre o Oeste selvagem e estava ansioso para conhecê-lo... Mas agora, ele provava de uma decepção que não podia ter imaginado... Toda a fantasia que aguçava a curiosidade dos imaginosos europeus, quando confrontada com a realidade daquela terra e daquela gente, convertera-se em sangue e selvageria... Nada que merecesse ser relatado ou escrito...
Sua mente pareceu rodopiar e ele estava de volta aquele saloon num lugarejo do Teças, em meio a um conflito de intrigas e maldades que quase lhe custou a vida... E de volita...Aquele nome, aquele rosto, aquele perfume, aquele corpo que lhe dominavam os sentidos e a razão... De volta àquela cama... De volta a Mary...
Como lhe fora ensinado uma vez por um xamã africano, ele bloqueou suas memórias e evitou que avançassem para... Não, ele não queria lembrar, mas ainda assim, mesmo dormindo, lágrimas caíram-lhe dos olhos...
Logo o sonho se transformou por completo. James se percebeu caminhando por San Juan Romero, entrando em casas, tentando chamar a atenção das pessoas, até perceber que, para elas, ele não era mais do que um invisível fantasma...E tudo estava tão deferente, como se o tempo tivesse voltado para trás...Então, ele compreendeu: era o passado daquele lugar, a história ocultada por aqueles homens de modos hostis, que agora se insinuava para ele...
Era uma época ruim para aquele vilarejo. O lugar havia sido cercado pelo bando de Ramirez, El Diablo, como ficou conhecido o criminoso mais sanguinário da fronteira, um homem maligno, com um coração selvagem, que não era o de um ser humano. Suas feições, seu riso, seus gestos... Eram os de um demônio...Contavam-se as coisas mais terríveis sobre ele... O povo de San Juan estava aterrorizado demais e ofereceu ao facínora todo o ouro que este desejasse levar. Ramirez aceitou o presente, mas seus interesses eram ainda maiores... Ele também ouvira histórias sobre San Juan Romero e o Padre Garcia...
O Padre Rodriguez Garcia chegara ao vilarejo tempos atrás e logo conquistara o afeto de todos. Aquela gente simples ficara deslumbrada com sua bondade, seu desprendimento e sua dedicação. Logo passaram a dizer que ele era um santo, enviado por Deus para ajudar aquela terra.
"_Entreguem-me esse Padre Garcia ou matarei cada um de vocês. Vocês têm uma semana." - disse Ramirez e o povo implorou-lhe que reconsiderasse e ele riu e mandou que voltassem ao vilarejo antes que ele perdesse a paciência com eles.
O povo de San Juan Romero conversou entre si e com o Padre Garcia (que, apesar de ser bom, estava aterrorizado) e juraram que não entregariam aquele homem santo, não importava o que acontecesse...
Mas naquela noite, homens de Ramirez entraram no vilarejo atirando e três pessoas foram mortas e mais quatro tombaram da mesma forma na noite seguinte...
"No sétimo dia, se eu não tiver o que pedi, matarei a todos" - era o que estava escrito numa mensagem deixada num saco, que fora jogada pelo bando de Ramirez no centro da vila, e dentro do qual estava a cabeça de Miguel, um mineiro gordo, idoso e que nunca fora conhecido por ser rápido ou ágil...
E o medo cresceu e começou a sufocar o pudor no coração dos habitantes de San Juan Romero. E, no quarto dia, eles amarraram e amordaçaram o Padre Garcia, que pensava em fugir, e - por estarem com medo e com vergonha de seus atos e como o sacerdote choramingava assustado como uma criança - bateram nele até que se calasse.
Eles o levaram até Ramirez, que os recebeu com um sorriso selvagem no rosto e uma satisfação demoníaca iluminando seus olhos.
"_Aqui está ele. Como você pediu. Por favor, agora parta e poupe a todos nós." - disse um homem, cuja voz estava maculada pela consciência e culpa (e que James percebeu ser o velho que ele encontrara ao chegar ao vilarejo).
"_Não. Eu quero mais do que isso"- retorquiu Ramirez.
E eles olharam confusos e assustados para o criminoso e ele continuou:
"_Vocês devem matá-lo, da forma mais dolorosa que puderem, e depois tragam o cadáver para mim e irei embora e então San Juan será poupada".
"Não!" - disse um dos habitantes do vilarejo (que James reconheceu como sendo Perez) - "Ele é um homem santo! Não podemos fazer isso!"
"Então,"- replicou Ramirez - "em três dias eu matarei todos vocês... Da forma mais dolorosa que eu puder imaginar".
Eles voltaram para o vilarejo. Assustados demais, confusos demais e em silêncio, pois qualquer palavra morria antes de deixar suas bocas...
No mesmo depósito onde agora James dormia, eles prenderam o Padre Garcia e se reuniram para decidir o que fariam, e debateram entre si e divergiram e discutiram e brigaram, até que Jose Saltares esmagou a cabeça de Juan Gomez com uma pá e o povo de San Juan percebeu que seu tempo estava acabando e que a proximidade da morte lhes roubara a razão.
Foi então que chegou o sexto dia. Os habitantes de San Juan Romero escolheram entre si um pequeno grupo (Perez e o velho que ajudara James faziam parte dele). Eles foram até o depósito, até o indefeso, amarrado e amordaçado Padre Garcia, ajoelha-ram-se diante dele, rezaram um "Pai Nosso", pediram perdão ao sacerdote e depois a Deus, armaram-se de picaretas e contaram o que iriam fazer.
Jamais houve, sobre a Terra, tanto medo, fúria, dor, revolta e desespero quanto nos olhos do Padre Garcia, enquanto eles golpeavam sem cessar e aquelas picaretas rompiam carnes e ossos. De sua boca, Garcia deixou escapar uma promessa feita sem palavras, de absoluto horror e vingança, que o acompanharia até as chamas abissais do Inferno.
Quando aqueles homens terminaram, estavam chorando.
Logo depois, ainda cobertos de sangue, levaram o que restara do Padre Garcia para Ramirez, o terrível Ramirez, que os esperava gargalhando, que nada disse quando seus homens puseram aquele corpo despedaçado num saco, que juntou todo o seu bando e partiu sem mais demora. San Juan Romero fora poupada, mas o preço dessa salvação e a gargalhada do demônio que chamavam de Ramirez permaneceu queimando na alma dos habitantes do vilarejo... Para sempre...
SAN JUAN ROMERO



Parte III

O sonho terminou e Sir James Winterwood despertou num sobressalto, pedindo a Deus que tudo aquilo tivesse sido apenas um pesadelo...Mas seu coração lhe avisava que era verdade...
Ele cuidou de arrumar suas coisas o mais rapidamente possível, pois, mais do que nunca, era essencial deixar aquele lugar amaldiçoado.
Quando ele chegou a rua, o sol já havia nascido. Todos os habitantes de San Juan Romero estavam reunidos lá fora. James sacou do revólver, porém logo percebeu a inutilidade de sua reação, pois eles não estavam interessados no viajante: todos permaneciam está-ticos contemplando uma figuram mais terrível e sombria do que qualquer coisa que o viajante já vira ou pudera imaginar:
Sua magreza era inumana; a coloração da pele parecia mais pálida que a de um cadáver; vestia um hábito de sacerdote, que estava em frangalhos; e os olhos, ah, os olhos eram o pior de tudo: a cor era indefinível; tentar contempla-los fazia a mente rodopiar e enchia o estomago com horror e ânsia de vômito e inundava o coração com uma mistura obscena de emoções: medo capaz de despedaçar uma alma; pena - que fez James curvasse no solo e chorar - e repulsa, pois se tinha a certeza de estar diante de algo maligno e blasfemo, algo que não devia existir, mas que, mesmo assim, ofendendo a toda a criação, caminhava sobre a Terra.
Aliado a isto, duas constatações quase arrancaram o espírito de James de seu corpo: a primeira foi perceber que, apesar de estarem diante daquele horror, o povo de San Juan Romero não tentava fugir ou resistir, pareciam como se estivessem resignados; em seguida, ele entendeu o óbvio, aquilo, fosse o que realmente fosse, era o Padre Garcia.
_Por favor, tenha piedade! - implorou Perez.
_Pelo amor de Nosso Senhor! Perdoe-nos! - disse o velho que antes intercedera por James - Nós estávamos assustados, temíamos por nossas vidas... Nunca quisemos fazer abique-lo!
_Sim - falou um terceiro homem - e nossa consciência jamais nos deixou em paz. Nós vivemos num inferno, atolados até o pescoço na culpa.
Para James, tudo aquilo já era um pouco demais e ele atirou contra a figura fantasmagórica do Padre Garcia... Até que o revólver estivesse descarregado e o espectro olhasse para ele...
_Você não pertence a isso. Vá embora. - ressoou na mente do viajante uma voz que lembrava túmulos, areia, assassinato e horrores.
_Por favor... Saia daqui. Você não precisa pagar também por nossos pecados... - aconselhou o velho e, antes que James reagisse, o ancião voltou-se para os outros habitantes de San Juan Romero e falou desta forma: _Amigos, nosso crime é indizível e não devemos mais continuar neste mundo, impunes, sem castigo, pelo mal que fizemos...Chegou a hora de terminarmos com tudo isso.
No momento seguinte, o velho segurou a mão de Perez e começou a rezar o "Pai Nosso" e, logo, todos, excerto James, também seguravam as mãos uns dos outros e rezavam.
Sir James pensava em fugir dali, mas estava abalado demais e, mesmo, curioso, para tomar qualquer atitude. Foi quando o fantasma ergueu a mão direita e um vento selvagem, que açoitava areia contra a pele, com a força de um chicote e um uivo infernal, tomou conta do lugar.
O viajante tentava proteger os olhos e caminhou desnorteado pela tempestade de areia, até que, sem poder calcular que distância havia percorrido, tombou naquele chão de vingança e horrores sobrenaturais.
Algum tempo depois, ele despertou. O sol queimava seu rosto. Estava dolorido e horrorizado. Seu cavalo, inexplicavelmente estava ali perto... E James não questionou isso, pois havia aprendido, uma década atrás, que certas dádivas devem ser aceitas sem maiores perguntas...
Ele montou. O mais lógico seria afastar-se daquele lugar para sempre... Porém, James se parecia mais com seu pai do que costumava admitir,e ele estava curioso em ver, com seus próprios olhos, como o destino da desafortunada San Juan Romero havia sido concluído.
Facilmente ele reencontrou o caminho de volta para o vilarejo e, novamente, cavalgou pela rua principal. Era um cenário de horrores, e James recriminou-se por sua curiosidade: por toda a parte cadáveres estavam espalhados, mas eram quase esqueletos, como se algo maligno e selvagem houvesse, violentamente, arrancado a carne dos ossos... Os rostos daqueles infelizes estavam maculados por uma expressão de desespero que fugia a qualquer descrição... E sobre todos eles havia areia...
Ele não encontrou qualquer sinal do Padre Garcia e agradeceu aos céus por isso.
James pensou em chorar, mas logo entendeu que não haveria nele lágrimas suficientes para algo assim... Ele apenas ficou em silêncio e pediu a Deus que se apiedasse da alma daqueles desafortunados...
Depois foi embora. Passou pela placa caída, onde se lia "San Juan Romero", hesitou um pouco, mas então pegou aquele objeto e amarrou com suas coisas no cavalo: por mais horrível que fosse, era uma recordação do que aconteceu e serviria, mais adiante, para provar a ele mesmo que não enlouquecera, nem sonhara tudo aquilo...
Sim. Aquele trágico episódio seria transformado numa história e tanto, embora ele duvidasse que alguém poderia acreditar nele.
De qualquer forma, James planejava voltar à Europa e repousar, pelo menos por um tempo, na propriedade de sua família, pois estava cansado deste sombrio, selvagem e terrível Novo Mundo...
Ele se voltou por um instante e disse: "San Juan Romero...", como se tentasse entender tudo aquilo, todo o horror e crueldade, e desejando que alguém pudesse lhe explicar que capricho, ou mecanismo secreto da criação, permite que homens bons, ou simplesmente comuns, transformem-se em assassinos e demônios...
Porém, seu coração advertiu-lhe que esse era um assunto grande demais, para ele ou qualquer outro homem, e Sir James Winterwood curvou a cabeça e partiu, com a alma ainda mais infeliz do que quando chegara... 

FIM

8.10.10

Steampunk em debate em São Paulo

Um novo evento vai por em discussão as várias vertentes culturais da ficção científica no Brasil. O seminário Science'n'Fiction será organizado pela universidade Cásper Líbero no final deste mês, na capital paulista. A última mesa do encontro, dedicada aos movimentos culturais sci-fi, terá uma participação de representantes do subgênero steampunk, como pode ser conferido neste endereço.




16h45
Mesa IV - Movimentos culturais sci-fi
Como a ficção científica une pessoas e promove movimentos culturais pela cidade de São Paulo. Apresentação de fãs de Steampunk e Star Wars vestidos a caráter.

Carlos Eduardo Pereira Felippe
Artista plástico, editor do site da Loja São Paulo do Conselho Steampunk, colunista do site OutraCoisa.com.br, um dos membros-fundadores do Conselho Steampunk.


Cauê Nicolai
Estudante a prazo de filosofia; desenvolvedor, programador e gestor web na maior parte do tempo. Mas é quando se dedica à música eletrônica/industrial underground que está sua paixão: foi moderador da lista de discussão Rejekto durante quatro anos; é músico de suporte nos shows do projeto de Electro-Industrial kFactor e do projeto de EBM/Industrial Tatari Gami; membro do Atari Game, duo que produz música com sonoridade que remete à decada de 1980, além de ser organizador e DJ da festa PÓS e do CyberCarnival, que estreiará em 2011. Seu projeto atualmente é construir um cenário mais favorável aos gêneros eletrônicos e industriais underground através de festas, festivais e divulgação dos lançamentos pelas redes sociais.

Marcelo ‘Chewie’ Forchin
Representante do grupo paulista de Star Wars, Conselho Jedi.

Henrique Kipper
Frequentador da cena Gótica paulistana desde o começo de 1990. Organiza eventos Góticos e Darkwave e páginas informativas sobre a subcultura Gótica desde 2004. Também é cartunista, ilustrador e quadrinhista profissional desde 1988. Iniciou sua colaboração com grupo The Maozoleum em março de 2004.

Um exemplo de retrotecnologia medieval

Alguém aqui ainda se lembra daquele meu post sobre a enormidade de exemplos de anacronismos tecnológicos que usam o sufixo punk? Baseado num artigo do escritor americano J. E. Remy, uma das possibilidades citadas era a de histórias situadas em uma era anterior à Vitoriana:

Candlepunk. O período histórico é a Idade Média, motivo para o subgênero também ser conhecido como "Castlepunk" e "Middlepunk". O escritor aponta ainda variantes: "Dungeonpunk", quando ocorre a adição de elementos mágicos, ou "Plaguepunk”, quando se enfatiza as antigas doenças que ocorreram naquela época. O exemplo citado é Doomsday Book de Connie Willis.

Tempos atrás, em uma conversa via twitter com Ana Cristina Rodrigues, ela me lembrou de um ótimo exemplar nacional que se encaixa em tal classificação. O conto em questão é "As lágrimas amargas de Sir Kay", escrito por Délio Freire para um especial do site de fanfics Hyperfan dedicado a recriar lendas inspiradas na figura do mítico Rei Arthur, de Camelot. Organizada pelo escritor e designer Octavio Aragão, uma das regras das Arturianas Alternativas era que não se utilizasse nos enredos a presença ativa da magia. O recurso poderia surgir como em nosso mundo, como por medo de maldições, por exemplo - algo explorado por Ana Cristina em seu conto, "A dama de Shalott", que mais tarde acabou sendo reunido em sua antologia Anacrônicas.

Mas foi Freire quem explorou mais a fundo a possibilidade de se usar tecnologias retrofuturistas em um cenário medieval naquele ciclo de contos. Herdeiro das ciências proibidas estudadas pelo falecido Merlin, o irmão de Arthur, Sir Kay, é convocado para investigar uma série de assassinatos na Abadia de Belaventura. Vou citar a seguir um trecho dessas investigações de Kay, com seu ajudante Tom, no melhor clima de O nome da Rosa, como um bom exemplo nacional de candlepunk - ou castlepunk, ou middlepunk, ou, se preferir, sem o tal sufixo, apenas como um retrofuturismo medieval:



A noite foi passando e quem chegou em seu lugar foi uma manhã de sol forte. Mas a noite dos dois servos do bom Rei Arthur foi passada em claro. O sol estava forte, mas ainda assim dois enormes castiçais acessos ajudavam os olhos de Sir Kay para a observação cuidadosa do objeto que cortava, a pele ressecada do cadáver. Uma incisão precisa na tampa craniana e um movimento firme das mãos foram o suficientes para retirá-la. Tom aproximou-se, mas afastou-se de imediato. O fedor e a visão interna do morto não faziam seu estômago comportar de maneira dócil.

A visão de pequenos vermes rastejando pelo cérebro do monge morto fez Tom acreditar que aquele corpo estava dominado por ovos de dragões. Sem demonstrar muita consideração pela opinião de seu pajem, Sir Kay voltou a tampar a cabeça do cadáver, explicando em seguida as relações existentes entre o consumo de carne de porco mal cozida e determinadas doenças estudadas por Merlin.

Desconcertado e cansado, pela noite em claro, Tom sentiu-se inútil naquele método investigativo e pediu licença para se recolher aos seus aposentos, no que o irmão de Arthur, necessitando de silêncio, atendeu prontamente. Enquanto o jovem fechava a porta, o cavaleiro examinava a face desfigurada do homem, que o intrigara desde que a viu. Porque alguém se daria ao trabalho de jogar um ácido no rosto do inimigo já morto? Haveria interesse em não identificar a vítima? Ou seria esse apenas um capricho sem sentido do criminoso? E tal homem seria uma espécie de canibal, um devorador de seus semelhantes? Ou, o que não acreditava, não seria esse um homem?
Pelo que observara do braço mastigado, um ser vivo havia se deitado sobre o monge com fins de se alimentar de sua carne. Com este, já eram quatro as vítimas. Todas, segundo o monge que os recebera, tiveram partes do corpo amputadas, como se a criatura ou o homem fosse movido por uma fome animal, uma necessidade visceral.

7.10.10

Corujas noturnas

Zack Snyder é um diretor conhecido por suas adaptações de quadrinhos consagrados, primeiramente 300, de Frank Miller, e mais recentemente Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. No filme que vai chegar aos cinemas brasileiros esta semana, o americano volta a a dirigir uma adaptação, mas desta vez a fonte original vem da literatura e o resultado é sua primeira animação. A lenda dos Guardiões é a versão em 3d da série de livros juvenis da escritora Kathryn Lasky (publicados no Brasil pela editora Fundamento) que encontrou personagens sui genreris para protagonizar sua história de fantasia. Ela usa uma rica diversidade de corujas de todas as espécies, das mais imponentes às menores, graças à pesquisa elaborada para o que, um dia, cogitou trabalhar na forma de obras de não-ficção. Com essa parceria, a Warner Brothers disputa um filão dominado por Disney e DreamWorks, o dos longas de animação. Aliás, o curta que antecede a atração principal parece estar lá para lembrar que, apesar de não ter seu nome muito associado a iniciativas do tipo nos cinemas, o estúdio tem longa tradição em outras mídias. Na tela grande, encarnações tridimensionais de Wile E. Coyote e do Papa-Léguas se enfrentam exatamente do mesmo modo que já cansaram de fazer em nossas TVs.



Diretor, escritora e estúdio podem se orgulhar do material que produziram e que deve ser apenas o primeiro de uma nova franquia cinematográfica, já que ainda há mais livros a serem adaptados e a estreia é bem promissora. Antes de mais nada, é preciso dizer o quanto faz diferença quando um projeto assim é planejado de fato para ser 3d e não apenas se dá um jeitinho na pós-produção. A riqueza dos detalhes do filme valorizam muito as cenas naquele mundo habitado por corujas inteligentes e que dominam tecnologia de metalurgia (vou tentar evitar aqui a piada que fiz no twitter classificando a obra como owlpunk, certo?). As texturas das penas daquelas aves, por exemplo, são um deslumbre à parte, uma demonstração de que a WB reuniu um ótimo time de animadores a seu serviço. E se desde Avatar, passando por Como treinar seu dragão, tomadas aéreas paracem ser um dos grandes atrativos da moda do 3d nas películas - aliás, será interessante ver o mesmo Snyder usar esses recursos no próximo filme do Superman, pelo mesmo estúdio - A lenda dos Guardiões não decepciona. Cada voo das corujas é um verdadeiro espetáculo, tanto em longas travessias entre tempestades quanto nas cenas de combate.

Boa parte da graça do filme está justamente baseada no realismo empregado para retratar seus atores, sejam os protagonistas, sejam os coadjuvantes. Os irmãos Soren e Kludd, capturados por um beligerante grupo autodenominado Puros; os aliados Gyfie, Digger, Crepúsculo; os míticos Guardiões que dão título ao filme; todos eles foram recriados mais baseados em suas contrapartes reais do que em uma antropomorfização caricata. Isso exige um grau maior de sutilezas dos responsáveis pela animação, pois não é tarefa das mais fáceis emprestar ao elenco expressões faciais dignas dos sentimentos despertados durante a história e com isso garantir a empatia dos espectadores. A tarefa é mais simples em alguns casos, como na reinterpretação do principal vilão da trama, chamado de Bico de Ferro na tradução brasileira, que com seu capacete sinistro se torna uma espécie de Darth Vader emplumado. Mas na maioria das vezes, são pequenos detalhes nos olhos tudo o que eles têm - e precisam - para passar a mensagem.

Com tanto requinte, a imagem que eu faço do filme é meio têxtil: o tecido é da maior qualidade, poderia dar uma traje e tanto, só pecou nas costuras. A história é bastante tensa e forte, com temas complicados de se lidar em relação a crianças menores, como sequestros, escravismo, crueza no campo de batalha... Elementos que poderiam dar leveza e unidade ao conjunto são exatamente os pontos fracos neste trabalho de Snyder. Trechos de virada do roteiro, como os alívios cômicos, o momento da profecia, a revelação da arma secreta ou mesmo o do interesse romântico, acabaram não sendo tão eficazes quanto poderiam. O resultado: para o público muito jovem e para quem não conhece a saga criada por Kathryn Lasky é a sensação de não poder aproveitar tanto quanto ocorreria se esses pontos fossem mais bem acertados. De qualquer forma, é excelente ver um novo jogador dando cartas neste circuito fechado das animações, ainda mais um que já venha para a mesa com a tradição de uma Warner.

3.10.10

Laerte e a República

Nem vou falar nada, deixa nosso melhor quadrinista fazer uma homenagem à República neste dia eleitoral. Ela foi multirretwittada em minha timeline e veio deste endereço.